A anarquia e as exceções
A esta altura, você pode estar pensando que há bons motivos por que a coerção política é colocada em lugar da anarquia pessoal em situações particulares. Talvez haja algum princípio básico que separe os dois que, se descoberto, resolverá esse mistério.
Se eu termino uma relação com uma namorada, eu não devo, legalmente, nada a ela. Se eu caso com ela, porém, devo. Quando eu aceito um novo trabalho, eu posso estar sujeito a um período produtivo de alguns meses, quando eu posso ser demitido – ou me demitir – impunemente. Podemos ver vários exemplos de situações análogas – a maior diferença, contudo, é que essas situações são todas voluntárias e análogas.
A justificação do estado – em particular do estado democrático – é fundamentada na ideia do "contrato social". Uma vez que nascemos em determinada localização geográfica, nós "devemos" ao estado lealdade, tempo, energia e dinheiro pelo resto de nossas vidas, enquanto permanecermos no local. Esse "contrato" está aberto a renegociação, se estivermos dispostos a alterar do governo através da participação no processo político – ou podemos deixar o país, assim como podemos deixar um casamento ou um emprego. Esse argumento – que remonta a Sócrates – é baseado numa ideia de contrato implícito que permanece em voga enquanto estivermos dentro dos limites geográficos dominados pelo estado.
Contudo, essa ideia de "contrato social" não passa num teste tão básico que ele é testamento ao poder da propaganda que tal noção tenha durado, como narrativa crível, por mais de 2.000 anos.
Crianças não podem celebrar contratos – e adultos não podem ter contratos impostos sobre si. Assim, nascer em uma determinada localidade não cria qualquer contrato, já que se deve ser um lunático ou um católico para acreditar que bebês recém-nascidos têm quaisquer obrigações.
Portanto, crianças não podem ser submetidas ou responsáveis por quaisquer formas de contrato social implícito.
Adultos, por outro lado, precisam ser capazes de escolher quais contratos celebrarão – se não puderem, não há diferença entre impor um contrato sobre uma criança e impô-lo sobre um adulto. Não é possível dizer que contratos são inválidos para crianças mas magicamente se tornam válidos quando a criança faz 18 anos e, a partir de então, criam obrigatoriedades para o adulto.
Também é importante lembrar que não há fundamentalmente algo que seja "o estado". Quando você paga seus impostos, eles se destinam a uma entidade abstrata semi- corporativa, mas eles são usados por pessoas de carne e osso. Assim, a realidade do contrato social é que ele "rotaciona" entre líderes políticos eleitos, servidores públicos concursados, juízes nomeados, consultores, etc. Essa aglutinação caleidoscópio de pessoas que fazem uso de fato de seus impostos são aqueles com quem é feito o contrato social verdadeiramente. (Isso pode acontecer no livre mercado também, é claro – quando você toma um empréstimo para comprar uma casa, seu contrato é com o banco, não com o agente do empréstimo, e não o segue quando ele muda de emprego.)
Porém, dizer que o mesmo homem pode receber uma obrigação de um contrato imposto unilateralmente representado por uma coalizão perpetuamente mutante de indivíduos, num sistema que foi estabelecido centenas de anos antes que ele tivesse sequer nascido, sem sua escolha – já que ele não escolheu onde nascer – ou aprovação atual explícita é uma afirmação patentemente absurda.
Podemos geralmente aceitar como injusto qualquer padrão de justiça que desqualifique a si próprio. Quando vemos às compras, nós não chamamos de "promoção" quando os preços são aumentados em 30%. Nós não usaríamos um "cupom" que adicionasse um dólar ao preço do que quer que estivéssemos comprando – na verdade, nós nem chamaríamos isso de "cupom"!
Se examinarmos o conceito do "contrato social", que é usado como justificativa fundamental para a existência do governo, é mais que razoável perguntar se o contrato social justificaria a aplicação do próprio contrato social! Ou seja, se o governo é moralmente justificado por conta da validade ética de um contrato implícito e unilateral, o governo então vai defender contratos implícitos e unilaterais? Se eu abrir uma concessionária de carros e automaticamente "vender" um carro a todos num raio de 10 quadras, mandando então o boleto de pagamento do carro que eles "compraram" – mandando também o carro, e estendendo essa obrigação a seus filhos por toda a eternidade também – o governo protegeria esse "contrato"?
Acho que todos sabemos a resposta a essa pergunta...
Se eu tentasse levar um contrato social à agência que utiliza como justificativa para sua própria existência o mesmo contrato social, ela riria da minha cara e me chamaria de louco.
Você já começa a perceber claramente em que tipo de contradições lógicas e morais o sistema estatista é baseado?
Muitas vezes durante a história humana, certas sociedades chegaram à válida conclusão de que, se uma instituição não pode ser mais reformada, ela deve ser abolida. O mais notável exemplo é a escravidão, mas nós podemos pensar em outros, como a união da igreja e do estado, a aristocracia oligárquica, as ditaduras militares, os sacrifícios humanos ou animais aos deuses, o estupro como espólio de guerra, a tortura, a pedofilia, a violência doméstica, entre outros. Isso não significa, claro, que todas essas práticas tenham sido extintas, mas significa que em muitas sociedades civilizadas o debate essencial está encerrado e não foi resolvido com a ideia de "reforma" de instituições como a escravidão. A expressão "regra do polegar" veio de uma tentativa de reformar as regras para o espancamento de esposas, e restringi-lo a pancadas com uma vara de espessura menor que o polegar. [N. do T.: A expressão em inglês "rule of thumb", literalmente "regra do polegar", designa um princípio básico utilizado como guia em certa questão.] Essa prática não foi reformada, mas abolida.
Essas reformas podem ter sido muito bem intencionadas, mas só podemos chamá-las de éticas por serem passos em direção ao objetivo final, que era a eliminação do conceito de espancar as esposas como norma moral. Da mesma maneira, alguns reformadores tentaram conseguir que os senhores de escravos batessem menos em seus escravos, ou menos severamente; porém, em retrospecto histórico e com nosso desenvolvimento moral, podemos ver que a instituição da escravidão jamais poderia ser reformado e tinha que ser abolida. Nós podemos apenas encontrar estímulo nessas reformas até o ponto em que elas reduzem o sofrimento presente, enquanto temos a esperança de que elas encorajem o objetivo de abolir a escravidão.
Qualquer moralista que dissesse que acabar com a escravidão fosse ser criminoso e moralmente desastroso, e que estimulasse os escravos a tentar trabalhar dentro do sistema, ou aconselhasse os donos de escravos a tratar seus escravos com menos brutalidade, mal poderia ser chamado de moralista, pelo menos de acordo com os padrões atuais. Em vez disso, nós denominaríamos esse "reformador" de conveniente apologista da brutalidade existente do sistema. Ao fingir que os males inerentes na escravidão poderiam ser mitigados ou eliminados através de reformas internas voluntárias, esses "moralistas" na verdade atrasaram ou paralisaram o processo rumo à abolição em várias áreas. Ao manter a falsa esperança de que uma instituição maligna pudesse ser transformada em boa, esses sofistas diminuíram o impacto do argumento moral, que era o de que a escravidão é inerentemente má e que, portanto, não pode ser reformada.
O conselho "estupre mais gentilmente" é um oximoro. O estupro é o contrário da gentileza, o oposto da moralidade.
É assim que vários anarquistas veem a proposição de que o sistema existente de violência política deva ser reformado internamente de alguma maneira, e não oposto fundamentalmente em termos morais, como mal absoluto, baseado na coerção e na brutalidade, em particular direcionada às crianças – com a consequência inevitável de que sua única salvação só pode advir de sua abolição completa.