Anarquia e Democracia
Pode ser considerado loucura tentar resgatar a palavra “anarquia” – porém, difamar a palavra “democracia” parece ser algo além do limite da loucura. Poucas palavras tem recebido mais referência no mundo ocidental moderno. Democracia é em sua essência a idéia que todos nós comandamos a sociedade. Nós escolhemos indivíduos para representar nossos desejos, e então a maioria tem impostos seus desejos em todos os outros, sujeito idealmente às limitações de certos direitos inalienáveis.
Os aspectos irracionais da democracia são bem difíceis de enxergar, por causa da grande quantidade de propagandas intermináveis que a apoiam (embora somente nas democracias, que está se falando), mas é impossível ignorá-los uma vez que se tornam evidentes.
A democracia é baseada na ideia que a maioria possui conhecimento suficiente para saber como a sociedade deve ser comandada, e manter os limites de leis morais básicas. Os eleitores são geralmente considerados capazes de julgar a economia, política internacional, educacional, caridade, política monetária, assistência de saúde, política militar et al políticas propostas pelos políticos. Esses eleitores então escolhem sabiamente entre esse bufete de várias propostas políticas, e a maioria escolhe sabiamente o suficiente que, o quer que seja promulgado, é de fato uma política sábia – e seu líder escolhido então decreta o que ele ou ela prometeu antecipadamente, e o bufete de propostas do líder é inteiramente sensato, e nenhuma parte desse bufete requer compromisso moral. Também, a maioria é virtuosa o suficiente para respeitar os direitos das minorias, mesmo que ela as dominem politicamente. Poucos de nós poderiam apoiar a ideia de uma democracia em que a maioria pode votar para colocar a minoria para morrer, digamos, ou roubar toda a sua propriedade.
Além disso, mesmo para a ideia de democracia funcionar, a minoria deve ser considerada sábia e virtuosa o suficiente para aceitar as decisões da maioria.
Em resumo, a democracia é derivada das premissas que:
A. A maioria dos eleitores é sábia e virtuosa o suficiente para julgar uma variedade incrivelmente ampla de propostas complexas por políticos.
B. A maioria dos eleitores é sábia e virtuosa o suficiente para se abster do desejo de impor sua vontade arbitrariamente sob a minoria, mas em vez disso irá respeitar certos ideais morais universais.
C. A minoria dos eleitores que é anulada pela maioria é sábia e virtuosa o suficiente para aceitar ser anulada, e irá pacientemente esperar a próxima eleição em ordem de tentar ter sua voz mais um vez, e irá respeitar os ideais morais universais de sociedade.
Isso, claro, é uma completa contradição. Se a sociedade está tão cheia de almas sábias, brilhantes virtuosas e pacientes, que todos respeitam ideais morais universais e estão querendo colocar de lado suas próprias preferências particulares em prol do bem comum, pra que diabos nós precisamos de um governo?
Sempre que essa questão é levantada, a imagem brilhante da "cidadania nobre" misteriosamente desaparece, e todos os tipos de espantalhos são levantados em seu lugar. “Bem, sem um governo, todo mundo estaria em conflito constante, não teriam estradas, os pobres não seriam educados, os velhos e doentes morreriam nas ruas etc. etc. etc.”
Essa é uma contradição enorme e evidente, e vale informar que não está presente em nenhum lugar do discurso de qualquer pessoa no mundo moderno.
A democracia é válida somente porque quase todo mundo é sábio e moral, nos dizem. Quando nós aceitamos isso, e questionamos a necessidade de um governo, a história subitamente muda, e nós dizem que nós precisamos de governo porque quase todo mundo é amoral e egoísta.
Você vê como nós temos uma relação ambivalente não somente com o anarquismo, mas com a própria democracia?
Da mesma forma, sempre que um anarquista fala sobre uma sociedade sem estado, imediatamente espera-se que ele produza evidência que cada pessoa pobre no futuro irá ser bem cuidada por caridade voluntária.
Novamente, isso envolve uma contradição gigantesca, que envolve a democracia.
O estado de bem-estar social, pensões aos idosos, e educação “gratuita” para os pobres, todos são considerados em uma democracia reflexos válidos das vontades virtuosas do povo – esses programas governamentais são oferecidos pelos políticos, e voluntariamente aceitos pela maioria que votou nele, e também voluntariamente aceitos pela minoria que concordou em obedecer a vontade da maioria!
Em outras palavras, a maioria da sociedade está perfeitamente disposta a doar um enorme pedaço de sua renda com o objetivo de ajudar os doentes, os pobres e os idosos – e nós sabemos isso porque esses programas foram votados e criados por governos democráticos!
Ah, dizem os anarquistas, então nós já sabemos que a maioria das pessoas estará perfeitamente disposta a ajudar os doentes, os idosos e os pobres em uma sociedade sem estado – democracia gera evidência empírica e incontestável desse simples fato! De novo, quando esse argumento básico é apresentado, o mito da nobre cidadania evapora mais uma vez!
“Oh não, sem o governo para forçar as pessoas a serem caridosas, ninguém mexeria um dedo para ajudar os pobres, as pessoas são tão egoístas, elas não se importam etc. etc. etc.”
Esse paradoxo não pode ser desfeito neste nível de insanidade. Se um governo democrático deve forçar uma população egoísta e indisposta a ajudar os pobres, então os programas do governo não refletem a vontade do povo, e a democracia é uma mentira, e nós devemos nos livrar dela – ou pelo menos parar de fingir de votar.
Se a democracia não é uma mentira, então os programas existentes do governo representam fielmente a vontade da maioria, e então o pobre, o doente e o idoso nada terá a temer de uma sociedade sem estado – e irão, por várias razões, ser muito melhor cuidados pela caridade privada que por programas governamentais.
Agora é fácil simplesmente livrar-se das contradições acima e dizer que em algum lugar, de alguma forma, apenas deve ter uma boa resposta a estas objeções.
Embora isso possa ser uma coisa agradável a se fazer no curto prazo, não é algo que eu tive muita sorte fazendo a longo prazo. Essas contradições voltam e me atormentam – e estou realmente muito feliz que elas tenham feito isso, pois acho que o progresso do pensamento humano depende totalmente de nós tomarmos nada como garantido.
A principal virtude é sempre a honestidade, e nós devemos ser honestos o suficiente para admitir quando nós não temos respostas racionais para essas objeções racionais. Isso não significa que nós devemos imediatamente vir com novas “respostas”, mas somente pensar sobre as questões por um tempo, ponderá-las, olhar para as fraquezas e contradições de nossas objeções – e somente quando nós estivermos satisfeitos que as objeções são válidas nós devemos começar a olhar para respostas racionais e empíricas para uma das maiores e mais antigas “soluções” comumente aceitas.
Esse processo de deixar de acreditar em não-respostas é fundamental para a ciência, filosofia – e é o primeiro passo em direção ao anarquismo, ou a aceitação que a violência nunca é uma solução válida para problemas não-violentos.