Anarquia e Guerra

Talvez eu tenha sido condenado a essa perspectiva particular desde pequeno. Eu cresci na Inglaterra nos anos 70, quando a sombra da Segunda Guerra Mundial ainda pairava no cenário mental. Eu li quadrinhos de guerra, vi filmes de guerra, ouvi detalhes de batalhas épicas, e fiquei em silêncio durante reuniões familiares bastante desconfortáveis, onde o lado britânico do meu pai tentou conversar com os alemães do lado da minha mãe.

Eu não pude deixar de pensar, mesmo quando eu tinha seis ou sete anos de idade, que se meu tio paternal saltasse sobre a mesa e estrangulasse meu tio maternal, isso seria visto como um horror imoral para todos os envolvidos, e ele iria sem dúvida para a cadeia, provavelmente para o resto da vida.

Por outro lado, se eles tivessem colocado uniformes, e estivessem dispostos em um campo de batalha de acordo com os caprichos de outros homens de uniforme, tal assassinato poderia ser aclamado como um sacrifício nobre e medalhas poderiam ser dadas, e pensões providas, e desfiles possivelmente aconteceriam.

Assim, mesmo naquele tempo de toalhas brancas macias e talheres suaves tinindo, eu mentalmente mastigava sobre o problema que assassinato é igual a mal, e também que assassinato é igual a bom. Assassinato é igual a prisão e assassinato é igual a medalhas.

Quando eu era um pouco mais velho, depois que “O Poderoso Chefão” saiu, uma enorme quantidade de filmes de gângsters espalhou seu vermelho-sangue através das telas do cinema. Nessas histórias, certas “virtudes” tribais como lealdade, dedicação e obediência a ordens eram retratadas como relativamente nobres, mesmo que esses açougueiros despejassem sua trilha de sangue em câmera lenta, geralmente ao som de música clássica, e chegando ao triste fim respingando sangue no concreto nu.

Esse paradoxo também me paralisou: “Assassinar um homem porque outro homem te manda – e te paga – é um mal e um mal irrecuperável.”

Então, é claro, outro filme de guerra poderia sair, com a mensagem moral exatamente oposta: “Assassinar um homem porque outro homem te manda – e te paga – é um bem virtuoso e corajoso.”

Eu me lembro de trazer essas contradições de vez em quando com os adultos em volta de mim, somente para encontrar uma irritação condescendente, geralmente seguida por uma necessidade como se eu preferisse na verdade estar falando alemão no momento.

Quando eu me tornei mais velho, e aprendi um pouco mais sobre o mundo, essas contradições não foram se resolvendo por si só, mas sim cresceram sem parar. Nós lutamos a Segunda Guerra Mundial contra o Nacional-Socialismo, disseram-me, enquanto eu mastigava hambúrgueres de soja terríveis, tremia de frio e me disseram que eu não podia tomar banho, porque os sindicatos estatais nacionalizados estavam afetando a economia britânica.

Disseram-me que eu tinha que ficar com muito medo dos impulsos egoístas de meus concidadãos – e também que eu tinha que respeitar suas vontades quando eles escolhessem um líder. Disseram-me que o propósito de minha educação era me permitir pensar por mim mesmo, mas quando eu tomava decisões que aquelas autoridades não concordavam, eu era desprezado e humilhado, e meu raciocínio nunca era examinado.

Disseram-me que eu não deveria usar violência pra resolver meus problemas, mas quando eu subia em um muro que eu aparentemente não deveria, eu era levado à sala do diretor, onde ele me batia com uma bengala.

Disseram-me que os britânicos eram os mais sábios, mais corajosos e mais virtuosos do planeta – e também que não era pra eu desobedecer aqueles que têm autoridade.

Quando me ensinaram matemática e ciências, eu era punido por pensar irracionalmente – e então, quando eu perguntava questões delicadas sobre a existência de deus, eu era punido por tentar pensar racionalmente.

Fui ridicularizado de covarde sempre que sucumbia à pressão dos colegas – e também ridicularizado por minha falta de interesse em aplaudir a nossa equipa de futebol local.

Quando eu propus pensamentos que aqueles que têm autoridade discordavam, eles exigiam que eu fornecesse provas; quando eu pedia que eles fornecessem evidências para suas crenças, eu era punido por insubordinação.

Isso não é nada peculiar a mim – todas as crianças passam por esse tipo de moedor de carne mental – mas eu não posso ajudar porém penso, a medida que cresci, que o que passou a ser "pensar" na sociedade era mais ou menos uma série interminável de manipulações destinadas a servir quem está no poder.

O que mais me perturbou emocionalmente não foi o absurdo e as contradições que me cercaram, mas sim o fato incontestável de que elas pareciam completamente invisíveis para todos. Bem, isso não é bem verdade. É mais correto dizer que essas contradições eram visíveis exatamente à medida em que elas eram evitadas. Todo mundo passava por um campo minado, alegando que não era um campo minado, mas evitando as minas a todo custo.

Ficou muito claro para mim muito rapidamente que eu morava em uma espécie de universo moral e intelectual negativo. As questões éticas que valiam mais a pena examinar eram aquelas que eram as mais zombadas, ridicularizadas e atacadas. O que era virtuoso era o que tantas vezes era considerado o mais vil – e o mais vil era o que era muitas vezes considerado o mais virtuoso.

Quando eu tinha 11, eu fui para o Ontario Science Center, que tinha uma exposição interessante e desafiante onde você tentava traçar o contorno de uma estrela olhando em um espelho. Eu sempre lembrava esta exposição, e só agora percebo porque – porque esta foi a minha experiência direta ao tentar mapear a ética e as virtudes proclamadas pelos que me rodeavam – principalmente aqueles com autoridade.

Em nenhum lugar estas contradições eram mais pronunciados do que na questão da guerra.

Levei muito tempo para perceber isso, porque o espetáculo, fogo e sangue da guerra é muito distintivo, mas a verdadeira violência da guerra não ocorre no campo de batalha, mas na pátria.

A carnificina do conflito é apenas um efeito da violência central que apoia a guerra, que é a escravidão militar dos cidadãos nacionais através do alistamento – e ainda mais importante, o roubo direto do seu dinheiro que financia a guerra.

Sem o dinheiro para financiar uma guerra – e pagar os soldados, sejam eles alistados ou não – a guerra é impossível. A violência real do campo de batalha é um mero efeito da violência ameaçadora em casa. Se os cidadãos não pudessem ser forçados a financiar a guerra – seja no presente, na forma de impostos, ou no futuro através de financiamento do déficit – então a carnificina do campo de batalha nunca poderia acontecer.

Eu tenho lido muitos livros e artigos sobre as origens da guerra – se é o nacionalismo, forças econômicas, premissas filosóficas defeituosas, conflitos de classe e assim por diante – nenhum deles abordou a questão central, que é como a guerra é paga. Isto é como utilizar explicações meramente psicológicas para explicar o porquê das pessoas jogarem na loteria, sem mencionar nenhuma vez o seu interesse no dinheiro do prêmio. Por que as pessoas se tornam médicos? Será que é porque eles têm uma necessidade psicológica de apresentarem-se como curandeiros divinos, ou porque é agradável à sua mãe e seu pai, ou porque estão se punindo secretamente, ou porque possuem um desejo altruísta de curar os doentes? Estas podem ser teorias interessantes para seguir, mas são meros efeitos do fato básico de que os médicos são muito bem pagos pelo que fazem.

Certamente teorias psicológicas ou sociológicas podem explicar porque uma pessoa em particular opta por se tornar um médico ao invés de exercer alguma outra ocupação bem paga – mas certamente deveríamos, pelo menos, começar com o fato de que, se os médicos não fossem pagos, quase ninguém se tornaria um médico. Por exemplo, se uma pílula mágica fosse inventada amanhã que garantisse saúde perfeita para sempre, não haveria mais médicos – porque ninguém pagaria por um serviço desnecessário. Assim, a principal origem dos médicos é – pagamento.

Da mesma forma, pode-se teorizar indefinidamente sobre o psicológico, sociológico ou causas econômicas da guerra, mas se nunca falarmos sobre o simples fato de que a primeira causa de guerra é o roubo doméstico e a escravidão militar, então tudo o que se segue permanece um mero subterfúgio abstrato e sem ar intelectual, mais projetado para esconder a verdade do que revelá-la.

Nós só podemos apontar armas para inimigos estrangeiros porque nós primeiramente apontamos as armas para os cidadãos nacionais.

Sem tributação, não pode haver guerra.

Sem os governos, não pode haver tributação.

Assim, os governos são a primeira causa da guerra.

A verdade da questão, creio eu, é que no fundo nós sabemos que se nós retirarmos este único segmento – que a coerção contra os cidadãos é a raiz da guerra – nós sabemos que muitos outras discussões também serão desvendadas.

Se reconhecermos que a violência é a raiz da guerra – violência doméstica, e não violência estrangeira – então nós encaramos o âmago e a verdade nua e crua na raiz da nossa sociedade, e na maioria das nossas aspirações morais coletivas.

O âmago e a verdade nua e crua na raiz de nossa sociedade é que nós realmente, realmente gostamos de usar a violência para ter as coisas feitas. Na verdade, é mais do que uma mera preferência estética ou pessoal – nós definimos o uso da violência como uma necessidade moral na nossa sociedade.

Como devemos educar as crianças? Para isso, temos de forçar seus pais – e todos os outros – a pagar a sua educação sob a mira de um revólver!

Como devemos ajudar os pobres? Para isso, temos de forçar os outros na sociedade a pagar por seu apoio a mão armada!

Como devemos curar os doentes? Para isso, temos de forçar todos a pagarem os cuidados médicos na mira de um revólver!

Agora, pode ser o caso que esgotaram todas as outras possibilidades e formas de lidar com esses problemas complexos e desafiadores, e que fomos forçados a a cair novamente em punição, coerção e controle como necessidades lamentáveis, e estamos constantemente à procura de maneiras de reduzir o uso da violência em nossas soluções para esses problemas.

No entanto, não é esse o caso, quer empiricamente ou racionalmente.

A educação das crianças pobres, ao socorro dos pobres e a cura do doente, tudo ocorreu por meio de instituições beneficentes privadas e associações de voluntários muito antes de agências estatais as substituírem. Este é exatamente o que seria de esperar, dado o apoio geral moderno a esses programas estatais, porque todo mundo está tão genuinamente preocupado com estes grupos carentes.

Onde a violência é considerado ser uma solução lamentável, mas necessária para um problema, os em posição de autoridade não se coíbem de falar abertamente sobre isso.

Quando eu era uma criança na Inglaterra na década de 1970, foi contado repetidamente com orgulho pelos meus velhos sobre o uso corajoso da violência contra as potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Ninguém tentou me dar a impressão de que os nazistas foram derrotados por uma negociação astuciosa e truques psicológicos. Os matadouros intermináveis das duas Guerras Mundiais não foram mantidos escondidos de mim, mas a violência foi sim elogiada como uma necessidade lamentável, mas moral.

As crianças americanas são informados sobre os ataques nucleares em Hiroshima e Nagasaki – o abate e o envenenamento por radiação de centenas de milhares de civis japoneses não é mantido em segredo, não é contornado, ignorado ou reprimido na narração da história.

Mesmo quando a guerra em questão era em si questionável, como a guerra do Vietnã, ninguém se esquiva da verdadeira natureza do conflito, que foi um assassinato genocida interminável.

Eu não acredito em nenhum momento que todos esses genocídios e massacres eram moralmente justificáveis – ou mesmo praticamente obrigatórios – mas a minha opinião é certamente uma opinião minoritária, e já que a maioria acredita que estes assassinatos foram ambos moralmente justificados e praticamente necessários, eles se sentem totalmente confortáveis discutindo abertamente a violência que consideraram inevitável.

No entanto, este não é o caso quando se fala em soluções estadistas para os problemas de caridade e saúde. Você poderia passar toda uma carreira acadêmica nesses campos, e ler infindáveis livros e artigos sobre o assunto, e nunca encontraria qualquer referência ao fato de que essas soluções são financiadas através da violência. Só para você poder entender como isso é realmente estranho, imagine passar 40 anos como um historiador profissional de guerra, e nenhuma vez cruzar com a ideia de que a guerra envolve violência. Não poderíamos considerar isso uma evasão notória de um fato bastante básico?

Esta é uma comparação bastante volátil eu sei, mas vimos o mesmo fenômeno ocorrendo na Rússia Soviética. Quase nenhuma referência foi feita aos gulags na literatura oficial do estado, particularmente aquela literatura destinada a ser consumida no exterior. As dezenas de milhares de presos de campos de concentração não apareceram em nenhum lugar na narrativa geral ou acadêmica da União Soviética – quando o livro "Um Dia na Vida de Ivan Denisovich" finalmente apareceu, mesmo esse conto relativamente suave do dia-a-dia da vida de um interno no campo de prisão foi recebido com choque, escárnio, horror e raiva por aqueles encarregados de defender a narrativa.

Não pode ser verdade que quando a sociedade está realmente orgulhosa de algo, a verdade é mantida misteriosamente escondida de vista. Podemos imaginar os fãs do New York Yankees trabalhando ativamente para reprimir o fato de que sua equipe venceu a World Series? Podemos imaginar os líderes comunistas da China suprimindo a notícia de que seus atletas haviam conquistado medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos? Podemos imaginar um departamento de polícia trabalhando febrilmente para censurar os fatos sobre uma grande redução na taxa de criminalidade?

Claro que não. Quando estamos realmente orgulhosos de uma conquista, não nos abstemos de falar sobre as suas causas. Um atleta olímpico vai falar com orgulho sobre os anos de intermináveis sessões de treinamento; um empreendedor de sucesso não vai esconder as décadas de trabalho duro que o levaram para o sucesso, uma mulher que lutou com sucesso para perder peso não irá usar vestir um terno para obesos quando ela for à sua reunião de ex-alunos do colegial.

No entanto, quando uma realidade fundamental entra em conflito com uma narrativa mitológica, acadêmicos, intelectuais e outros líderes culturais são bem compensados pela sua capacidade de ignorar completamente aquela realidade fundamental – e, geralmente, selvagemente atacam e ridicularizam qualquer um que a traga à tona.