Anarquia Cotidiana
Por exemplo, vejamos namoro, casamento e família.
Em qualquer sociedade livre e racional, essas atividades não caem na área da coerção política. Nenhuma agência governamental escolhe com quem você deve se casar e ter filhos, nem pune você por desobedecer estas regras. Voluntarismo, incentivo, vantagem mutual – devemos dizer “propaganda”? – tudo gerido pelo livre mercado do amor, sexo e casamento.
Que tal sobre a sua carreira? Algum agente do governo te chamou no fim do ensino médio e te informou que você irá se tornar um médico, um advogado, um trabalhador de fábrica, um garçom, um ator ou programador – ou um filósofo? – Claro que não. Você foi deixado livre para escolher a carreira que mais se adequa aos seus interesses, habilidades e iniciativas.
Que tal sobre suas decisões financeiras? Aparece cada mês em seu lar um funcionário público e te diz exatamente quanto você deve poupar, quanto você deve gastar, se pode pagar um sofá novo ou uma pintura antiga? Você teve de solicitar ao governo permissão para comprar um carro novo, uma nova casa, uma televisão de plasma ou uma escova de dente?
Não, em todas as áreas mencionadas acima – amor, casamento, família, carreira, finanças – todos nós fazemos grandes decisões na completa ausência de coerção política direta.
Assim – se a anarquia é uma maldade universal, porque em seu padrão – e puro – é a independência que nós demandamos para podermos alcançar a liberdade em nosso dia a dia?
Se o governo te disser amanhã que irá escolher por você onde você irá viver, como ganhar o seu soldo, e com quem você deve se casar – você cairia nos seus joelhos e agradeceria à Deus por você ter sido salvo da terrível anarquia – a anarquia de fazer suas próprias decisões na ausência de coerção política direta?
Claro que não – muito pelo contrário – você ficaria aterrorizado e iria ser opor a tal ditadura invasora com toda a sua força.
Isso é o que eu quero dizer quando nós consideramos anarquia como sendo um mal irredutível – e também irrefutavelmente benéfico. É ao mesmo tempo temida e desprezada – e considerada necessária e virtuosa.
Se você ficasse sabendo amanhã que você acordaria e que não teria um governo, você sem dúvida temeria o espectro da “anarquia.”
Se você ficasse sabendo amanhã que teria que solicitar por uma permissão estatal para ter filhos, você sem dúvida temeria o espectro da “ditadura” e desejaria de volta os dias de ”anarquia” quando você podia decidir tais coisas sem intervenção política.
Assim nós podemos ver que os seres humanos são extremamente, quase ferozmente ambivalentes sobre “anarquia”. Nós desesperadamente desejamos ela em nossa vida pessoal assim como a tememos em nossa vida politicamente.
Outra maneira de demonstrar isso é que nós amamos a anarquia que vivemos e no entanto tememos a anarquia que imaginamos.
Mais uma coisa e aí sim você poderá decidir se a minha paciência é além das esperanças ou não.
É apontado que uma ditadura totalitária é caracterizada pela quase ausência completa de regras. Quando Solzhenitsyn foi preso, ele não tinha ideia do que estava realmente sendo acusado. Quando foi sentenciado a 10 anos de prisão, não houve possibilidade de apelo à corte ou quaisquer procedimentos legais. Ele desagradou alguém que estava no poder e por isso foi mandado para um dos gulags.
Quando nós examinamos países onde o poder estatal está no seu auge, observamos situações de extrema instabilidade e uma ausência notável de regras ou padrões objetivos. As ditaduras inferiores dos países de terceiro mundo são regiões arbitrariamente e violentamente comandadas por gangues de sociopatas.
Mais perto de casa, para a maioria de nós, temos o exemplo de escolas públicas de cidades do interior, cercadas de detectores de metais e saturadas com brutalidade, violência, assédio sexual e bullying. As vizinhanças ao redor também estão sob o controle rígido do Estado que comanda programas de bem-estar social, habitações públicas, estradas, polícia, ônibus, hospitais, esgotos, fornecimento de água e eletricidade. Esses tipos de vizinhanças se tornaram algo além do socialismo democrático e atualmente estão próximas à ditadura comunista.
Similarmente, quando pensamos nessas cidades interioranas como um todo, também podemos entender que a maior parte da violência endêmica resulta do tráfico de drogas, o qual está diretamente relacionado com o banimento governamental da fabricação e venda de certas drogas. Tratar viciados em vez de prendê-los iria, estima-se, reduzir a atividade criminosa em até 80%.
Aqui, novamente, onde há a concentração de força política, nós vemos violência, mutilação, tiroteios, estupros e todo o desespero e niilismo – tudo o que interminavelmente chamam de “anarquismo”.
O que dizer sobre prisões, onde o poder político aparece em seu auge? Prisões fervem com estupros, assassinatos, esfaqueamentos e agressões – para não mencionar o vício em narcóticos. Guardas sádicos espancam prisioneiros sádicos à ponto da única diferença entre os dois ser o uniforme. Aqui nós temos a “sociedade” que parece ser a paródia da “anarquia” – um universo feio e niilista, normalmente descrito pela palavra “anarquia” que na verdade resulta da maximização do poder político, o extremo oposto da “anarquia”.
Agora, nós certamente poderíamos argumentar que sim, talvez seja verdade que um excesso de poder político gere anarquia – mas a deficiência de poder político gera anarquia também! Talvez a “ordem” seja um tipo de significado aristotélico, que permanece entre o caos da completa ausência de coerção política e o caos do excesso de coerção política.
No entanto, nós rejeitamos inteiramente essa visão nas outras áreas mencionadas acima – amor, casamento, finanças, carreiras, etc. Nós entendemos que qualquer intromissão da coerção política nessas áreas seria um desastre completo para nossa liberdade. Nós não dizemos, em relação ao casamento, “Bem, nós não queremos o governo escolhendo a esposa de todos – mas também não queremos o governo ausente da escolha das esposas! A quantia correta de coerção governamental encontra-se aproximadamente no meio.”
Não, nós especificamente e inequivocamente rejeitamos a intrusão de coerção política em tais aspectos de nossas vidas.
Assim, uma vez mais, podemos visualizar o paradoxo básico que nós desesperadamente necessitamos e desejamos, a realidade da anarquia em nossa vida pessoal – e ainda desesperadamente odiamos e tememos a ideia da anarquia em nosso ambiente político.
Nós amamos a anarquia que vivemos. Nós tememos a anarquia que imaginamos – a anarquia que fomos ensinados a temer.
Enquanto nós podemos discutir a realidade de nossa ambivalência em relação à esse tipo de voluntarismo, nós devemos ficar fundamentalmente emperrados como espécie – como qualquer indivíduo que cobre sua ambivalência, nós devemos gastar nossas vidas em uma evasão distraída e oscilante, para o detrimento de nosso próprio presente e para o futuro de nossos filhos.
É por isso que eu não posso deixar esse paciente morrer. Eu ainda sinto um batimento cardíaco, um batimento muito forte!