A anarquia e a proteção

Uma das realidades com as quais os anarquistas se deparam – e que certamente é digna de discussão – é a de que os governos alegam servir e proteger seus cidadãos. Quando eu era criança e questionava eticamente a Segunda Guerra Mundial, me foi perguntado se eu preferiria falar alemão. Em outras palavras, os corajosos homens e mulheres das forças Aliadas deram suas vidas e seu sangue para me defender dos predadores estrangeiros que certamente me escravizariam. Essa abordagem reforça a noção básica de que o governo estava tentando proteger seus cidadãos.

Da mesma forma, quando eu questiono o uso de violência na educação, as pessoas me dizem que, sem violência – se for admitido que ela existe – os pobres continuarão ignorantes. Essa abordagem reforça a noção básica de que o propósito da violência estatal nesta área é a de educar as crianças.

Pode-se ver o mesmo padrão em todas as outras áreas. Quando eu falo da violência na guerra contra as drogas, dizem-me que, sem essa guerra, a sociedade se entregaria ao vício niilista e à violência – portanto, o objetivo da guerra às drogas é manter as pessoas longe das drogas e seus vizinhos a salvo da violência. Quando eu falo da absurda e coercitiva predação perpetrada pela Previdência Social, dizem-me que, sem ela, os idosos morreriam de fome nas ruas – assim reforçando a narrativa de que o objetivo da Previdência Social é a de prover renda para os mais velhos, sem a qual eles não poderiam se sustentar.

Quando examinamos a narrativa de que o estado existe para proteger seus cidadãos, claramente podemos ver que, se desenterrarmos a realidade básica da violência da cobrança de impostos, uma maligna contradição emerge.

É muito difícil para mim falar que só tenho interesse em proteger você se eu o ataco primeiro. Se eu te surpreender na minha van, colocar um capuz na sua cabeça, te jogar no porta-malas e, depois, te amarrar no meu porão, você aceitaria que eu só queria te proteger como explicação razoável para essa selvageria?

Certamente você diria que, se eu estivesse realmente interessado em mantê-lo a salvo de apuros, por que eu o teria sequestrado e trancado numa sala? Obviamente, se eu inicio o uso da força contra você, é um tanto irracional (no mínimo) que eu diga que só estou agindo para protegê-lo do uso da força.

Essa é uma razão central por que nunca se fala sobre a agressão que os governos iniciam contra seus cidadãos para conseguir dinheiro e soldados para suas guerras. É difícil sustentar a tese de que os governos existem para proteger seus cidadãos se a primeira ameaça aos cidadãos é sempre seu próprio governo.

Se eu tenho que roubar de você para custear a "proteção" contra roubos da sua propriedade, no mínimo, eu acabo de criar uma contradição lógica inescapável, senão uma situação moral altamente ambígua.

Em geral, quando a coerção é um meio infeliz mas necessário de atingir um bem moral, essa coerção não é escondida dos olhos públicos. Nos dramas policiais, a violência da polícia não é escondida. Nos filmes de guerra, bombas, balas e partes de corpos voam pela tela com grande liberdade.

Contudo, a coerção nas raízes da guerra e dos programas sociais do estado permanece ignorada, não reconhecida, reprimida, escondida; é loucura, uma vergonha e uma imprudência falar sobre ela.

O caçador que usa um silenciador, atira num cervo no meio da noite e cuidadosamente esconde seu corpo, sem deixar rastros, não pode se orgulhar do que faz – e, de fato, ele tem muita vergonha de seu hobby.

Portanto, quando um anarquista olha para a sociedade, ele vê uma vergonha desesperada em relação ao uso da violência para atingir fins sociais como o custeio da máquina militar, a saúde e a educação públicas. Qualquer anarquista que tenha nem que seja um vago interesse em psicologia – e eu certamente me coloco nesta categoria – entende que essa vergonha reprimida é absolutamente tóxica, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade.

Assim, inevitavelmente recai sobre os anarquistas a tarefa ingrata de "desenterrar o corpo no jardim", ou seja, de apontar para o comum, predominante e crescente uso da violência para atingir objetivos morais na sociedade. "Isso é certo?", pergunta o anarquista – plenamente consciente dos olhares hostis e ressentidos que recebe daqueles à sua volta. "Como pode a violência ser tanto o maior mal quanto o maior bem?" "Se a violência que usamos para atingir nossos fins morais é, de fato, justificada e boa, por que nos envergonhamos tanto de falar dela?"

Ser anarquista, dessa forma, requer grande resistência à desaprovação e hostilidade social.

Quando as pessoas exaurem todas as outras possibilidades, elas tendem a não se constrangerem em adotar suas soluções eventuais. Mesmo que nós adotemos a narrativa oficial da Segunda Guerra Mundial por seu valor nominal, os vencedores só foram capazes de expressar orgulho porque a narrativa incluiu a significativa ressalva de que não havia outra resposta possível à agressão dos alemães, italianos e japoneses.

Pais tendem a ser muito abertos sobre as palmadas aplicadas em suas crianças se eles realmente acreditam que nenhuma outra alternativa racional ou moral existe ao uso da violência. Se bater numa criança é o único jeito de ensiná-la a ser um adulto bom, produtivo e racional, então não bater nela é obviamente uma forma de permissividade parental, isso se não for um tipo de abuso. Dessa maneira, bater na sua filha se torna uma responsabilidade moral, um bem, da mesma forma que segurá-la se ela tentar correr para uma via com trânsito intenso e fazê-la comer suas verduras e legumes são bens.

Esse tipo de pai ou mãe, evidentemente, reage com ultraje e indignação se a ele for sugerido que há alternativas mais produtivas à violência no trato com crianças – pela óbvia razão de que, se essas alternativas efetivamente existirem, a violência se transforma de um bem a um mal moral.

Essa é a situação enfrentada pelo anarquista quando ele fala de alternativas não- violentas às atuais "soluções" coercitivas. Se há uma maneira não-violenta de ajudar os pobres, tratar os doentes, educar as crianças, proteger as propriedades, construir estradas, defender áreas geográficas, mediar disputas, punir criminosos e assim por diante – então o estado se transforma, de uma instituição infelizmente necessária, num monopólio obviamente criminoso.

Essa é uma pílula difícil de se engolir para a maioria das pessoas, por diversas razões psicológicas, pessoais, profissionais e filosóficas.